Algumas considerações #4

A psicanálise em e para as marcas

Se Dolto está certa, e acredito que esteja, a criança, em seus estados pré- e edipiano, tem a fantasia fundida com o pensamento. Porém, e isso é algo que eles não viram nem nunca conseguiriam/conseguirão ver justamente pela superficialidade de seus conceitos, se a criança tem essa característica, então por que diabos eles pensam que as coisas acontecem nela ou são vistas por ela do jeito que eles relatam, com os conceitos que eles usam? Por que diabos a analidade é a consciência de morte na criança? Como poderia a criança relacionar as intensidades do excremento a sair com as intensidades da morte? Se o argumento é que a bosta é perdida pela criança e que essa perda se relaciona com a perda da morte… ora, como afirmar que a criança vê a própria bosta como perda? É o mesmo, me parece, que afirmar que a criança vê a saliva como perda, logo, uma criança que saliva é aquela que se relaciona com a morte, aquela que sente a morte. Haverá agora o argumento do cheiro da bosta que se diferencia do da saliva (se é que esta tem cheiro): muitas crianças se relacionam com a própria bosta como se fosse um brinquedo; cada brinquedo possui seu cheiro – cada um deles possui sua intensidade, seu devir misturado ao pensamento da criança, que é também fantasia, o que explica, aliás, a capacidade da criança se relacionar de modo especial em e com os cheiros da mãe. Se a criança possui consciência de morte, de modo algum ela está ligada com a analidade, que de modo algum é o indício de sua mortalidade para ela. Talvez a consciência de morte venha mais a partir do encontro de corpos ou na visão desse encontro – não que, aqui, eu esteja admitindo a alteridade, coisa que pra mim não existe, mas sim o sentido (por mais que as ciências kantianas de hoje a deplorem) –: a criança mata uma formiga; a criança vê um animal se alimentando de outro; a criança vê que a abelha morreu após picá-la. Três modos de encontros bem cotidianos e que permitem à criança a possibilidade de ter um encontro com a morte e traçar seus caminhos.

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Lógica e infância

Já foram introduzidos os jogos eletrônicos na escola, há já o desenvolvimento da lógica no ensino da criança e jovem: agora podemos nos perguntar o que ganhamos com isso, o que a lógica proporcionou às crianças. A lógica não é humana – isso me parece algo claro –, não é viva. Quais os tipos de atividades e potencialidades que um corpo e pensamento infantis encontram nessa não-humanidade da lógica que lhe é imposta? Acho muito difícil encontrar alguma relação que não a de repulsa, desinteresse. Se “a criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer”, ela só o faz enquanto numa relação com a vida, com o devir, que sempre é ativo, que permite a passividade ativa da criança ao se relacionar com a vida, pois a criação é um ato de conspurcação do próprio criador. A lógica, enquanto algo destituído de lama, é algo que impede a criação infantil, justamente porque os por quês recebem seus porques através de caminhos delineados com precisão; o caminho já está determinado, não pode haver espaço para fugas, enquanto que a criança já imagina diversos outros caminhos ao ver um. A lógica proporcionou a maquinização das crianças, hoje elas se interessam (quer dizer, após a derrota delas) muito mais pela máquina, pelo apenas frio da máquina, destituída de intensidades, do que pelo frio, calor e intensidades da vida. Isso consequencia a transformação da vida, do livro, da intensidade e da atividade (os psicanalistas a chamam de libido) em lógica. A criança não desenhará mais ovelhas, mas as imprimirá; não criará mais mundos e nem rosas que são únicas de um mundo, mas as imprimirá e não acreditará na unicidade de tal rosa. Platão se veria obrigado a falar desse quarto nível, o nível das impressões.

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Música e dança

Quando assistia a apresentação dos concertos um e quatro para piano e orquestra de Beethoven, sentou-se ao meu lado uma garota de talvez uns oito ou nove anos, que “com certeza” não sabia direito o que ia ouvir/encontrar ali, provavelmente tendo sido persuadida a ir – e “por que não?” deve ter pensado. Já hoje em dia não é raro encontrar crianças que apreciem música clássica: mas algo que creio ser comum a todas elas é a contrariedade a todo formalismo, regras e protocolos que devem ser seguidos, para terem, vivenciarem uma boa audição e experiência da música, justamente porque o devir da música é a dança. Não existe dança sem música (por mais que tentem; e muito menos aquela independente desta, como desejam alguns), mas também não existe o contrário. O pianista dança com os dedos; o flautista dança com a boca. E não os vemos com frequência absurda dançando com o corpo inteiro? Um violinista em seu solo não consegue ficar sem dançar. – A criança que se sentou ao meu lado dançava com os dedos como se estivesse tocando o piano mesmo – e dançaria com o corpo inteiro se o ambiente não fosse dos piores, se as pessoas não fossem da pior índole –, e isso está longe de ser um modo de imitar o pianista (a psicanálise insiste em que a criança imita a mãe, o outro etc.), mas ela está criando novas formas de fazer escoar o soar do som misturado com o devir-dança. Nisso a música (p.ex.) celta sai muito mais na frente: é possível que alguém fique parado ouvindo Beltaine? Mas não é bem isso: a atmosfera que cerca toda a música celta é a de uma música pagã, ritualística, báquica, enquanto que a música clássica é feita para reis, duques, grão-duques, companhias sérias de balé – aquela lá é feita pro povão burro, analfabeto, pobre e pelado. Mas a total perda das potências da música clássica estão em Schönberg – expressionismo é a expressão da morte das potencialidades da música clássica. Talvez isso tenha começado no romatismo, mas me parece indiscutível que Schönberg é o cume dessa bela montanha de bosta. – Culpo ninguém de hoje, então, se a nossa época é a desses funks cariocas, sertanejos universitários, axé, forró etc., pois a música foi feita pra dançar: não culpo criança algum por preferir ouvir algum desses lixos do que Mozart (ah, até mesmo esse grande dançarino não teve seu cu perdoado).

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Trilha sonora do dia:

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